Dia 11

Nova York, dia 11

Jon acordara pouco antes das 6h da manhã. A boca seca denunciava a leve ressaca, resultado da noite anterior. Abriu os olhos com cuidado e, virando-se, sentiu o corpo quente ao seu lado. Levantou juntando toda a coragem que tinha e dirigiu-se ao banheiro. Enquanto mijava tentou relembrar os últimos passos.

Saíra sozinho para tomar um único copo antes de ir para casa, mas entre um gin tônica e outro, ligou para Alicia. Abriu o chuveiro, precisava de uma ducha para voltar a sentir-se gente. A água quente abria seus poros e trazia a memória de volta. 

Ao telefone, Alicia disse que estava ocupada, mas que poderia passar em sua casa depois das 22h. Ainda eram 19h e, contrariado, disse que não iria. Ela simplesmente concordou. Três doses depois ele estava às 22h10 tocando a campainha da casa de Alicia.  

Ele saiu do chuveiro molhando tudo ao redor, sabendo que isso a irritaria. Não se importou. Pensava, ao vestir-se, que deveria comprar uma camisa antes de ir ao escritório, porém, qual o sentido? Ao terminar, parou um momento no batente da porta e olhou para o corpo da mulher ainda adormecida. 

Admirou-se com o quanto ela era linda e com o quanto parecia indefesa. Sorriu pensando que ela, provavelmente, lhe daria um soco se a chamasse de indefesa. Estavam juntos há um tempo. A conhecera em um dia qualquer num bar qualquer que havia ido com colegas da firma. Enquanto esperava no balcão ela chegou e lhe ofereceu uma bebida. Sua audácia o desarmou. Ela o olhava firme e repetiu a pergunta. Como não aceitar? 

Ela era de estatura mediana, pele morena, cabelos curtos, olhos tão escuros que pareciam dois buracos negros naquele rosto tão pequeno. Ali, parado na entrada do quarto, pensou que deveria ter imaginado que não se sai ileso ao mergulhar em buracos negros. 

Porém, ela não era seu perfil de mulher. Ele se acostumara a mulheres lindas, esguias e dóceis nos seus últimos anos. Ele, que nunca fora o capitão do time quando jovem, tinha se tornado um homem bonito e a bem sucedida carreira o possibilitara circular por ambientes prestigiados que lhe punha em contato com mulheres lindas, esguias e dóceis.  

Alicia não era dócil. Dona da própria vida, fazia o que e quando queria. E Jon não estava nem entre as cinco prioridades dela. Ele sabia disso. E gostava. Gostava de saber que ela era esse indivíduo livre, ainda que isso o assustasse às vezes.  

Tomou um gole de café e pensou que, no fundo, queria ser ela quando crescesse.  

Alicia se mexeu na cama, ocupando todo o espaço vazio. Jon pensou por um instante em despir-se novamente e voltar quietinho para a cama. Virou as costas e saiu do apartamento antes que o pensamento se tornasse por demais tentador. 

7h09

Jon entrou no taxi, deu a direção e voltou a perder-se. Percebeu que aparentemente somente uma mulher ocupava sua mente e que talvez isso fosse um problema. Resolveu deixar esse pensamento de lado para não se irritar e pensou no dia que teria pela frente.  

Aos 29 anos era o mais novo sócio de uma importante firma de advocacia. Sua facilidade com pessoas e em identificar o que cada um esconde fez com que progredisse rapidamente na empresa. Agora era alguém e com isso aumentava sua responsabilidade.  

Parou em frente ao imponente prédio, com suas janelas de vidro, deixou uma generosa gorjeta, comprou a tal camisa ao lado e entrou. Centenas de pessoas se aglomeravam na porta dos elevadores, que mesmo sendo muitos, subindo em dezenas intercaladas, não escoavam o mar de gente. Jon entrou finalmente em um deles, apertado, ouvindo conversas desconexas e, somente por um segundo, desejou estar novamente na cama com Alicia. 

Chegou em sua mesa, ligou o computador e enquanto esperava a eternidade foi pegar um café. Beijou Andira, a senhora de ascendência latina que era copeira, disse que ela estava particularmente linda naquela manhã e a pediu, pela milésima vez, em casamento. No que, como sempre, Andira lhe respondeu que era areia demais para o caminhãozinho dele, em gracejos tradicionais tão particulares que ninguém mais compreendia.  

O dia prometia ser longo, cheio de processos maçantes e uma rotina esmagadora. Ele estava cansado, imaginou que fosse por conta das poucas horas dormidas e do sexo que, com Alicia, o deixava esgotado. 

8h45

Jon continuava sem nenhuma concentração. Outro café para tentar. Segurando a fina xícara, Jon parou em frente à janela.  

Perguntou-se o que estava fazendo ali, preso no alto de um arranha-céu. Pensava em Alicia e entristeceu-se ao pensar o quão pouco sabia sobre ela e ainda assim ela já era tão cara a ele. Sabia que era um pouco mais velha, que não era estadunidense, que crescera em tantos países distintos que ele sequer sonharia em conhecer, que em algumas noites acordava confusa e chorando, desviava de seu abraço, respirava fundo e sorria um sorriso melancólico antes de voltar para a cama. 

Jon olhou para fora, para o céu e pensava que queria ser como Alicia quando crescesse. E, com o ecoar do nome dela, o mundo explodiu em um clarão. 

                                                                           ***

Santiago, dia 11

Sofia era uma garota alegre. No alto dos seus 16 anos sentia-se adulta. Tivera um infância tranquila, entre seus pais e seu irmão mais novo. Sua mãe era advogada e o pai professor. Em casa, ao contrário do que acontecia com seus amigos, não havia segredos e nunca a trataram como uma miúda estúpida. 

Lembra-se de adormecer desde muito nova no colo do pai depois dos corriqueiros jantares que ocorriam com os amigos deles. Depois de comer, os adultos sentavam-se em volta da mesa e entre cigarros e garrafas de vinho discutiam o mundo, ou seja, literatura, política, economia e, quiça, corações partidos. 

Sofia gostava de ouvi-los mesmo que não entendesse muito à princípio. Com o tempo foi aprendendo, lendo, estudando e suas opiniões, por mais inocentes que fossem, eram escutadas e debatidas.  

Na noite anterior sua casa estava cheia, como sempre, mas Sofia estava um pouco chateada. Sofria de uma pequena desilusão amorosa tipica de adolescente. Seus pais foram empáticos e ela subiu para o quarto. Seu pai foi logo depois, sentou-a na beirada da cama e começou a pentear seus cabelos como fazia quando era criança enquanto tentava saber o que exatamente estava acontecendo.  

Ele fez uma longa trança e vendo que ela não queria falar, lhe deu um beijo e a chamou de indiazinha. Sofia sorriu. Ela era exatamente como o pai. Pequena, pele morena, olhos negros. O irmão Carlo, desde pequeno, via-se que puxara a mãe com sua pele branca como o leite e olhos azul celeste.  

Quando menina, Sofria se ressentia das cores da mãe e queria ser como ela, a mulher mais linda da face da terra. Um dia, quando o pai a chamara de indiazinha, Sofia brigou com ele e disse que não queria ser uma indiazinha pequena e frágil. 

Seu pai afastou-se, mas não respondeu. No dia seguinte à chamou a biblioteca e lhe entregou um pequeno livro de capa amarela. Ela devia ter uns 10 ou 11 anos. E disse que se depois de ler aquilo ainda se achasse pequena e frágil e se aborrecesse  por seus antepassados, nunca mais diria nada. Sofia leu em três dias, entregou o livro de volta ao pai e pediu desculpas. Ele sorriu, devolveu o livro a ela dizendo que agora lhe pertencia e a chamou carinhosamente de indiazinha. 

Apesar de ter ido para a cama cedo, Sofia não dormiu bem, acordando de tempos em tempos com os barulhos do andar de baixo. Acordou pouco antes das 6h e se preparou para o colégio. Seus pais estavam na mesa, evidentemente cansados de uma noite em claro, ouvindo concentrados os sons que vinham do rádio com alguns amigos. Ela podia ver que esperavam más notícias, mas lhe deram bom dia e pediram para arrumar o irmão e juntos irem para a escola. 

7h50

Sofia saiu de casa segurando Carlo pela mão. A escola ficava um pouco longe, mas gostava dessa caminhada matinal. Eles costumavam contar cada flor, árvore e pássaro do caminho, tanto que já sabiam de cor tudo o que havia no entorno de casa.  

Ela levava, orgulhosa, duas tranças nos negros cabelos, enquanto o irmãozinho contava curioso tudo à volta com seus lindos olhos azuis. Os pássaros não cantavam nessa manhã, tudo estava quieto. 

15h30

O dia havia sido pior que a noite. Todos na escola pareciam preocupados, mas ninguém falava nada. Sofia queria saber e aguardava ansiosa a hora de voltar para casa. Chegando, tudo estava em polvorosa. Lembrou-se do dia que perguntara porque sempre tinha tanta gente entrando e saindo e sua mãe sorrindo lhe respondeu que a casa deles era como um quartel general onde os heróis se reuniam para decidir como salvar o mundo. E Sofia acreditou, afinal, aqueles seus heróis estavam construindo um país novo que seria de todos.  

Nessa tarde quieta, ao perguntar o que estava acontecendo um amigo da família lhe disse que tudo, tudo o que vinham construindo ruíra. Que o país lhes fora tomado, que não mais lhes pertencia. Sofia quis não entender, mas entendera bem demais. O ciclo voltava a se fechar novamente para despedaçar a esperança. 

As horas passavam, Sofia tentava distrair Carlo ao mesmo tempo que tentava pescar mais notícias. Tudo piorava. 

22h33

A casa estava mais quieta do que já esteve em muito tempo. Seus pais sentados na mesa da cozinha, os cigarros acesos, os copos vazios. Velavam em silêncio a morte do sonho construído solidariamente. Sofia não queria dormir, mas foi para a cama pensando que o amanhã traria boas novas e só o que tinham que fazer era continuar lutando. 

Antes que dormisse, seus pais entraram no quarto. Agradeçam pela mulher forte que ela estava se tornando e desejaram uma boa noite para sua indiazinha. 

4h44

Sofia acordara com um estrondo, como se a casa estivesse caindo. Sentou-se atordoada e sentiu cheiro de fumaça. De um pulo, correu para a porta para ver que estava trancada. Sem pensar duas vezes, abriu a janela e se precipitou. O sobrado era alto, mas podia sair tão bem pela janela quanto pela porta, heranças de uma criança arteira. 

Sofia andou pela rua de trás e, ladeando a casa, viu tudo em chamas. Correu e num turbilhão perguntava-se onde estavam seus pais, quem e por quê a trancaram no quarto, por quê a casa estava pegando fogo.  

Onde estava o seu irmão? 

Sofia via os carros parados em frente a casa escondida atrás de uma árvore que tanto fizera parte de suas contagens. Uma criança chorando foi jogada num porta-malas. Dois corpos arrastados e jogados em outro carro. 

O fogo ia engolindo seu quarto, seus livros, sua vida. Sofia começou a correr de encontro a casa, porém a jovem indiazinha entendia bem demais o que estava acontecendo. 

Enxugando as lágrimas que, rebeldes, insistiam em cair, Sofia deu as costas ao seu quartel general e sorrateiramente desapareceu nas ruas lúgubres da cidade procurando por seus heróis.  

Deixe um comentário